No Brasil, além das normas gerais de Direito Civil e Comercial, os contratos firmados no setor da indústria farmacêutica devem observar regulações específicas, como as Resoluções da Diretoria Colegiada (RDCs) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e outras legislações sanitárias. Neste artigo, exploraremos os aspectos jurídicos mais relevantes para a elaboração e gestão de contratos nesse segmento.
A Relevância dos Contratos no Setor Farmacêutico
Contratos afetos à indústria, formalizam as relações entre elas e os fornecedores de insumos, distribuidores e prestadores de serviços. Tais acordos devem considerar a complexidade normativa que rege o setor. A Anvisa, por exemplo, atua fortemente na fiscalização e regulamentação para garantir a segurança, eficácia e qualidade dos produtos e processos.
No âmbito contratual, os ajustes asseguram o cumprimento dessas regulamentações. Um exemplo é a RDC n.º 658/2022, que estabelece as Boas Práticas de Fabricação (BPF). Nos contratos entre fabricantes e fornecedores de insumos farmacêuticos, é fundamental incluir cláusulas que garantam que os insumos adquiridos atendam aos critérios de qualidade especificados pela norma.
Cláusulas Fundamentais em Contratos Farmacêuticos
- Conformidade Regulatória
Os contratos devem prever a responsabilidade das partes em cumprir todas as normas regulatórias aplicáveis. Por exemplo, um contrato para a fabricação terceirizada de medicamentos deve exigir que a contratada esteja devidamente licenciada e cumpra as normas de BPF estabelecidas pela RDC n.º 658/2022. A ausência de tais cláusulas pode acarretar sanções pela Anvisa e prejuízos financeiros para as partes. - Responsabilidade pela Qualidade dos Produtos
As cláusulas devem definir responsabilidades para garantir qualidade dos insumos, fabricação e distribuição de produtos. A previsão de auditorias regulares e planos de monitoramento contínuo, como exigido pela RDC n.º 658/2022 também deve ser considerada. A RDC n.º 430/2020, que estabelecia boas práticas de distribuição, armazenamento e transporte de medicamentos, exigindo que todos os envolvidos na cadeia logística garantissem a integridade do produto, foi alterada pela RDC n.º 653/2022 (em vigor desde março de 2024). Nos contratos com distribuidores, deve-se incluir cláusulas que especifiquem as condições de transporte e armazenamento, exigência de investimentos em tecnologia embarcada nos veículos de transporte, como sistemas de monitoramento de temperatura, sensores e dispositivos de controle além de prever penalidades por descumprimento. A RDC n.º 653/22 trouxe modificações significativas no setor de transporte especialmente no que diz respeito aos prazos para adequação das rotas com a possibilidade de inclusão da avaliação de risco da farmacêutica no mapeamento delas. Isso flexibiliza as regras de controle de temperatura e transporte, fazendo com que as transportadoras possam ajustar suas rotas adequando-as com base em avaliações de risco específicas, considerando fatores como condições climáticas, infraestrutura viária e outros elementos. A revisão do prazo de transporte de medicamentos até a dispensação final, que antes era restrito a 8 horas pela RDC n.º 430, tornou-o flexível desde que as empresas realizem este mapeamento, incluindo informações com análise de risco das rotas e dos percursos críticos. - Qualificação e Responsabilidade de Fornecedores
Os contratos visam garantir que fornecedores e terceiros cumpram as normas da RDC n.º 658/2022, incluindo cláusulas que:
• Exijam certificações de BPF e documentação completa.
• Prevejam auditorias e monitoramento de conformidade. - Gestão de Riscos e Recall de Produtos
Contratos entre empresas farmacêuticas e distribuidores devem prever mecanismos para lidar com situações de desvios de qualidade, recall de medicamentos, com fundamento na RDC n.º 625/2022. Isso inclui a definição de responsabilidades para comunicar às autoridades (Notificação à Anvisa e consumidores), recolher os produtos do mercado e custear as operações de recall. A legislação brasileira impõe obrigações rigorosas nesse sentido, e contratos omissos podem gerar litígios prolongados. - Propriedade Intelectual e Confidencialidade
A proteção da propriedade intelectual é crucial no setor farmacêutico, especialmente em contratos que envolvam o desenvolvimento de novos medicamentos. Esses acordos devem conter cláusulas de confidencialidade robustas para proteger fórmulas, métodos de fabricação, dados de resultados de estudos clínicos, dados de pacientes submetidos aos estudos e outras informações sensíveis, além de especificar a titularidade de marcas, patentes e direitos autorais gerados pela parceria. - Proteção de Dados Pessoais
A inclusão de cláusulas robustas de proteção de dados pessoais, especialmente os dados pessoais relacionados à saúde que são considerados sensíveis, e a adoção de medidas de segurança, em alinhamento com a Lei 13.709/2018 (LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados), também deve estar prevista em contrato. - Penalidades e Rescisão
Prever sanções para descumprimento de obrigações contratuais e condições para rescisão, como por exemplo: multas em caso de não conformidade com BPF, atrasos injustificados na entrega de insumos, gerenciamento de estoques remanescentes com o parceiro, devoluções de produtos que ainda venham a ocorrer, transferências ou cancelamentos de registros, etc.
Existem ainda situações que são muito peculiares a esse mercado, como nos exemplos citados abaixo:
1 - Contrato de Fornecimento de Insumos
Uma empresa farmacêutica contrata um fornecedor de matéria-prima para a produção de medicamentos genéricos. A RDC n.º 204/2006, que sofreu alterações introduzidas pela RDC n.º 72/2007 e pela RDC n.º 32/2010, regula os insumos farmacêuticos ativos e exige que todos os fornecedores sejam registrados na Anvisa e cumpram as normas de segurança e rastreabilidade. Nesse cenário, o contrato deve prever:
- Exigência de certificações do fornecedor.
- Penalidades por não conformidade que resultem em sanções regulatórias ou perda de licenças.
- Cláusulas que garantam auditorias periódicas nas instalações do fornecedor.
2- Parcerias para Pesquisa e Desenvolvimento (P&D)
Empresas do setor frequentemente firmam contratos com instituições acadêmicas ou startups para o desenvolvimento de novos medicamentos. Nesse caso, é essencial incluir cláusulas que regulem:
- A titularidade e o licenciamento das inovações tecnológicas, em conformidade com a Lei da Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996).
- Propriedade intelectual sobre inovações e patentes.
- Partilha de custos, receitas e riscos no desenvolvimento de novos medicamentos.
- Compliance com normas éticas, como a Resolução CNS 466/12 sobre pesquisas envolvendo seres humanos.
- Prazos e entregáveis no processo de P&D.
- Obrigações de confidencialidade para proteger os dados sensíveis.
Desafios e Riscos Jurídicos
Por fim, é importante considerar que um dos maiores desafios na gestão contratual da indústria farmacêutica é a constante atualização regulatória. Novas RDCs podem exigir adaptações nos processos contratuais e operacionais como as alterações na regulação, demandando revisões contratuais para refletir as novas exigências. Estar atento às atualizações é papel do profissional do direito que realiza gestões contratuais para mitigar os riscos protegendo as partes envolvidas e assegurando a conformidade.