Certamente, esse é um dos temas mais polêmicos e tormentosos nos últimos anos no que diz respeito à interação da classe médica com a indústria da saúde – a qual engloba a indústria farmacêutica, de produtos médico-hospitalares e até mesmo de cosméticos e alimentos.
Meu uso do verbo “patrocinar” é proposital. Isso pois ele é utilizado, a meu ver de forma equivocada, por uma série de empresas, inclusive multinacionais com o sponsor, ao conceder uma passagem aérea, transfers terrestres, acomodação em hotel, refeições e custeio da taxa de registro no evento. A despeito das restrições contidas em alguns códigos de associações das indústrias, que promovem a autorregulamentação, algumas empresas vão
além e pagam até pela obtenção de vistos (caso o evento seja no exterior), guarda de malas, entretenimento etc.
Refiro-me como equivocada a utilização do verbo patrocinar no parágrafo anterior devido ao conceito de patrocínio, o qual pressupõe a oferta de uma transferência de valor, sempre almejando uma contrapartida. Portanto, seria correta a sua utilização ao afirmar que uma determinada empresa vai patrocinar determinado evento, pois ela vai transferir determinado valor que será utilizado no custeio e lucro da instituição organizadora. Ela também terá, em seu benefício, algumas contrapartidas a serem determinadas pela cota do valor que está pagando, seja a exposição do seu logo, a inserção de um vídeo promocional, totens espalhados pelo local do evento, assim por diante.
Todavia, utilizar “patrocínio” para justificar a ida de um médico para um congresso é uma grande temeridade. A expressiva maioria das empresas que paga as despesas de médicos em congressos tem como principal bandeira o fato de que tal iniciativa jamais deve interferir no ato prescricional do médico, garantindo a sua autonomia na decisão de prescrever o melhor tratamento para o paciente. Não à toa que muitas dessas empresas tomam uma série de decisões internas para mitigar o potencial conflito de interesses. Isto é, elas criam políticas claras a respeito de como tal iniciativa deve ser conduzida internamente, deixam os recursos e a tomada de decisão de escolha do médico a ser beneficiado exclusivamente a cargo da área médica em vez da área comercial, estabelecendo os critérios para a eleição do médico a ser beneficiado, limitam a quantidade de benefícios a um mesmo médico no mesmo ano e estabelecem tetos de transferência de valor, ainda que não se referindo a honorários, mas sim à cobertura de despesas.
Seja como for, o mais correto é a utilização do termo subvenção, denominado em inglês como “grant”, que se assemelha ao termo doação, porém com a finalidade educacional ou científica. É inquestionável que o papel desempenhado pela indústria da saúde na qualificação e atualização do profissional médico contribui muito para a disseminação de conhecimento atualizado, considerando a velocidade com que as transformações e inovações ocorrem nesse campo. Porém, é altamente questionável o critério de escolha de tais médicos e até que ponto tal iniciativa não compromete o médico em prescrever o produto daquela determinada empresa.
Com respeito à escolha, por mais que a empresa tente deixá-la a caráter exclusivo da área médica, blindando a área comercial de escolher o médico que deve ser beneficiado, é muito difícil que a área médica direcione recursos para um médico que mais precisaria de ajuda financeira para participar do evento. Em vez disso, prefere-se alcançar o médico líder de opinião (KOL – Key Opinion Leader), sob o argumento de que este, sendo geralmente um professor ou alguém que detenha admiração e respeito de demais colegas, conseguiria assimilar tais conhecimentos e teria mais oportunidade de disseminar esse conhecimento.
Existem algumas formas de tentar frear o poder de escolha por parte das empresas, na medida em que tais recursos fossem destinados às sociedades médicas e essas tivessem o poder de escolha ao determinar quais médicos seriam beneficiados. Isso anula o potencial conflito de interesses a ser estabelecido entre a empresa detentora dos recursos e o médico beneficiado, pois os recursos sairiam de um fundo comum das sociedades médicas, como já era feito nos Estados Unidos há muitos anos. Outrora, o autor desse artigo, em nome de uma entidade de classe e discutindo essa questão com um dos maiores oncologistas clínicos do Brasil, recebeu a proposta de redirecionar esses recursos aos hospitais, deixando que eles tenham o poder de escolha dos médicos que seriam beneficiados. Ambas as situações ainda enfrentam um dilema: o critério político de escolha dos médicos a serem escolhidos, favorecendo possivelmente apenas determinado grupo de profissionais, seja pela sociedade médica, seja pelo hospital que recebe tais recursos.
Não obstante, o segundo ponto é ainda mais complexo: até que ponto tal iniciativa não compromete o médico em prescrever o produto daquela determinada empresa. Um médico, antes de tudo, é um ser humano e, por mais honesto e íntegro que seja, ainda é movido por razões e emoções humanas. Tendo isso em mente e olhando para a diversidade e qualidade dos produtos atuais na área de saúde que são oferecidos para determinado tratamento, percebe-se que as opções são as mais diversas possíveis e, em sua grande maioria, divergem muito pouco em termos de eficácia e perfil de segurança. Logo, se um médico recebe a subvenção de uma determinada empresa para participar de um congresso e considerando que o produto dela é similar àquele da concorrência, muito possivelmente esse médico tenderá a alterar o seu hábito prescricional em benefício da empresa, retribuindo o suporte que recebeu, sem que isso venha a causar qualquer mal ou deficiência no tratamento do seu paciente. Os relatórios comercializados pelas auditorias farmacêuticas facilitam a comprovar esse fato.
Em 2017, durante uma aula de um curso de pós-graduação em Buenos Aires, ocorreu a discussão mais significativa da qual eu já participei. Na presença de representantes das maiores empresas da área de saúde do mundo e de alguns especialistas no setor, após uma sessão
de debates onde uma corrente defendia a prática e outra a condenava, sobreveio uma indagação de uma participante de uma das 3 maiores farmacêuticas mundiais que calou a todos os presentes, praticamente encerrando a discussão. A pergunta dela foi: quando você contrata um arquiteto ou um advogado, você paga as despesas dele para que ele vá se capacitar e prestar o serviço para você? O silêncio reinou por alguns segundos na sala.
Seja como for, a questão precisa ser enfrentada de frente pelas entidades de classe de cada setor, de forma aberta, transparente. Seus respectivos comitês de ética precisam se debruçar sobre isso para a tentar mitigar os potenciais conflitos de interesse nessa prática ou, em último caso, bani-la. Não é fácil perder privilégios, mas tais privilégios precisam atender ao interesse coletivo da sociedade e não de um indivíduo ou de uma empresa.