Uma das maiores preocupações no setor de saúde é o potencial conflito de interesses na relação da indústria farmacêutica e de produtos médicos com os profissionais de saúde e, em especial, os médicos. Esse potencial acaba se materializando em razão da especificidade que ocorre nesse segmento, ou seja, a indústria tem como cliente final um paciente, mas quem determina ao paciente a compra de determinado produto é o médico. Por outro lado, o médico é pago pelo paciente para que esse prescreva o melhor tratamento para restabelecer o seu bem estar.
Logo, quando a indústria farmacêutica ou a indústria de produtos médicos concede algum benefício pessoal a um médico, interferindo na sua autonomia em prescrever o tratamento mais adequado para o profissional de saúde, o conflito de interesses está materializado. O benefício aqui referido pode ser desde um simples brinde, como uma caneta plástica, até mesmo viagens ao exterior, com passagem e hotel pagos. Outra forma de beneficiar ao médico é a sua contratação para desempenhar um determinado serviço.
Atualmente, considerando que há inúmeros produtos concorrentes cuja eficácia e perfil de segurança são muito semelhantes na maior parte das áreas terapêuticas, a indicação pelo médico de um determinado produto, em retribuição ao apoio financeiro que recebeu da indústria, não implica necessariamente em prejuízo à saúde do seu paciente. Mas, por outro lado, isso não descaracteriza o conflito de interesses, visto que sua decisão não deveria ser impactada por qualquer atitude da indústria além da exposição honesta e transparente do valor agregado do seu produto à saúde de pacientes.
Physician Payments Sunshine Act
O Physician Payments Sunshine Act (também conhecido como Sunshine Act) é uma legislação dos Estados Unidos, promulgada em 2010 como parte da Lei de Cuidados Acessíveis (Affordable Care Act). O objetivo principal do Physician Payments Sunshine Act foi aumentar a transparência em relação aos pagamentos e outras transferências de valor feitas por empresas farmacêuticas e fabricantes de produtos médico-hospitalares para médicos e hospitais.
Foi a primeira lei inovadora de transparência nessa relação entre indústria e médico. Ela obrigava as indústrias a elaborar um relatório anual de pagamentos a médicos, relatando ao governo federal americano quaisquer pagamentos ou transferências de valor feitas para médicos e hospitais, como honorários por palestras, consultorias, viagens, refeições ou presentes. A partir desses dados, passou a haver uma publicação anual em um banco de dados público gerenciado pelos Centros de Serviços de Medicare e Medicaid (CMS), conhecido como Open Payments. Isso permitiu que o público visse quais médicos e instituições de saúde receberam pagamentos de indústrias farmacêuticas ou de produtos médico-hospitalares.
Com efeito, o propósito da lei foi dar transparência a potenciais conflitos de interesses, de forma que o paciente pudesse fazer seu juízo de valor ao receber o tratamento de um determinado médico.
Disclosure Code – EFPIA
Para a Europa, inicialmente, não foi a lei que normatizou essa relação entre indústria e paciente, mas sim o Disclosure Code, editado pela European Federation of Pharmaceutical Industries and Associations (EFPIA). Ele autorregulamentou a necessidade de dar transparência às transferências de valor da indústria para profissionais de saúde, especialmente os médicos, devido ao potencial conflito de interesses.
Após o Disclosure Code, diversos países europeus começaram a sancionar leis específicas para garantir tal transparência, por exemplo, a França, Eslováquia, Portugal, Grécia, Dinamarca e outros. O artigo “A Captura de Transferências de Valor para Profissionais de Saúde” é um artigo recomendado para se aprofundar no tópico .
A Realidade Brasileira
No Brasil, apenas o Estado de Minas Gerais avançou nessa questão ao promulgar as seguintes Leis Estaduais:
Minas Gerais, ao sancionar as duas leis acima, obrigou a indústria de cuidados com a saúde a capturar todas as transferências de valor feita a profissionais de saúde registrados nos Conselhos situados no estado, além dos patrocínios realizados ou organizados por empresas de MG em outros Estados. Além disso, são obrigados a reportar anualmente à Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais até o último dia do primeiro mês do ano subsequente.
Nessa esteira, seguiram-se os Projetos de Lei (PLs) nº 7990/2017 de 04/07/2017 de autoria do Deputado Federal Geraldo Resende (PSDB-MT), nº 11050/2018 de 27/11/2018 de autoria do Deputado Federal Carlos Henrique Gaguim (DEM-GO), nº 11.177/2018 de 11/12/2018 de autoria do Deputado Federal Reginaldo Lázaro de Oliveira Lopes (PT-MG) e nº 204/2019 de 04/02/2019 de autoria do Deputado Federal Roberto de Lucena (Podemos-SP). Essas leis buscam nacionalizar essa obrigação para todos os Estados, tornando o Ministério da Saúde e a Anvisa responsáveis por receber e dar divulgação a tais informações. A exceção é o terceiro PL que cita apenas o Ministério da Saúde. Todavia, até o presente momento, tais PLs não foram convertidos em lei.
CFM Edita a Resolução CFM nº 2386 de 21 de agosto de 2024
O Conselho Federal de Medicina brasileiro editou a Resolução CFM nº 2386 de 21 de agosto de 2024. Ela foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) em 2 de setembro de 2024 e passou a normatizar os procedimentos e regras em relação a vínculos de médico com indústrias farmacêuticas, de insumos da área da saúde e equipamentos médicos. Não obstante, essa norma possui uma vacatio legis (intervalo entre a data da publicação de uma norma e a data em que ela entra em vigor) de 180 dias e, por conseguinte, entra em vigor somente 180 dias após a data de sua publicação.
De acordo com essa resolução, o médico que tiver vínculo com indústrias farmacêuticas, ou que produzam insumos e produtos médicos, equipamentos de uso médico exclusivo ou de uso comum com outras profissões, ou ainda com empresas intermediadoras da venda desses produtos, é obrigado a informar, no próprio site do CRM-Virtual do Conselho Regional de Medicina no qual tiver inscrição ativa, o nome da(s) empresa(s) em que prestará serviço. O médico também é obrigado a avisar o Conselho o término de seu vínculo.
Portanto, essa nova regulamentação difere sobremaneira das demais normas por duas razões: não serão publicados valores e atribui tal função de divulgação os websites dos CRM-Virtuais dos Conselhos Regionais de Medicina nos Estados. Em contraste, no âmbito do Physician Payments Sunshine Act, nos EUA, quem coordena a publicação são Centros de Serviços de Medicare e Medicaid (CMS), no âmbito do Disclosure Code, na Europa, as indústrias farmacêuticas são as responsáveis pela divulgação em seus sites e, no Estado de Minas Gerais, a Secretaria de Estado de Saúde é que se responsabiliza pela publicação em seu website, por meio da utilização do sistema Declarasus.
A resolução define o que seria considerado como vínculo:
I – Contratado formalmente para desenvolver ocupação ligada às indústrias farmacêuticas, ou que produzam insumos e produtos médicos, equipamentos de uso médico exclusivo ou de uso comum com outras profissões, ou ainda com empresas intermediadoras da venda desses produtos.
II – Preste serviço ocasional e/ou remunerado.
III – Realize ou participe de pesquisa, de desenvolvimento de fármaco, materiais, produtos ou equipamentos de uso médico exclusivo ou compartilhados.
IV – Seja convidado ou contratado mediante remuneração para fazer sua divulgação.
V – Membro da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) e de conselhos deliberativos similares como Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e outros.
VI – Palestrante (speaker).
O médico beneficiário passa a ter a obrigação de fazer tal comunicação de cada benefício no prazo de 60 dias após o recebimento de cada benefício, além de declarar potenciais conflitos de interesse em entrevistas, debates ou congressos médicos. As exceções da obrigação de comunicar englobam (i) rendimentos e dividendos decorrentes de investimentos dos beneficiários em ações e/ou cotas de participação das concedentes, (ii) amostras grátis de medicamentos e/ou produtos recebidos das concedentes e (iii) benefícios recebidos por sociedades científicas e entidades médicas.
Por fim, a resolução deixa clara a proibição do recebimento pelo médico de quaisquer benefícios que estejam relacionados a medicamentos, órteses, próteses, materiais especiais e equipamentos hospitalares sem registro na Anvisa. A exceção são protocolos de pesquisa aprovados nos Comitês de Ética em Pesquisa.
Resultado Prático para a Sociedade
A intenção por trás dessa iniciativa do CFM e das demais iniciativas de Governos ou de Associações de Classe é impedir que médicos tenham sua prescrição comprada por indústrias de cuidados com a saúde. Isso impede que se utilizem de benefícios pessoais a esses médicos, de forma a receber como contrapartida a prescrição aos investimentos feitos.
Naturalmente, seria de se esperar que as empresas investissem em novos produtos e em qualidade de produção, para sustentar uma propaganda condizente com o valor agregado que tal produto traria para o paciente. Porém, o mercado é miscigenado e nem todas as indústrias farmacêuticas, por exemplo, trabalham com produtos novos, mesmo porque a criação de um novo medicamento demanda uma gama de recursos colossal.
Uma certa vez, participando de um seminário e conversando com o CEO de uma grande empresa que também era palestrante, ouvi dele a seguinte mensagem: “Fazer propaganda de um produto novo que acaba de chegar ao mercado é fácil. Eu quero ver é fazer propaganda de Merthiolate para o médico. O que mais você vai dizer ao médico que ele já não saiba?” Evidentemente, Merthiolate foi utilizado como um exemplo de um produto maduro e existente há muito tempo no mercado
Outro aspecto que também precisa ser levado em consideração é o paciente. Não obstante as louváveis iniciativas, dificilmente ele as conhece e, mesmo aqueles que já ouviram falar, dificilmente se dão ao trabalho de pesquisar potenciais conflitos de interesse no momento de buscar um médico. Dessa forma, todo o esforço é em vão. Logo, sem campanhas de conscientização da opinião pública, apesar de válidas todas essas iniciativas, é improvável que o resultado pretendido seja alcançado.