Após momentos de muito sofrimento em que não apenas o Brasil, mas o mundo se viu diante de uma pandemia letal que culminou no óbito de milhões de pessoas, a vida começa a voltar ao normal e as mazelas econômicas causadas pela pandemia, em paralelo aos danos à saúde de cidadãos, vão mostrando o dramático abismo social, que vai engolindo principalmente as classes C e D, no Brasil. Índices econômicos, PIB abaixo da meta e inflação galopante demonstram que o fantasma da recessão é mais concreto do que gostaríamos que fosse.
A despeito das ideologias políticas de cada um, o Brasil, que já foi um império governado por um imperador até 1822, que já foi governado por ditadores e por militares, experimenta o regime democrático, que é definido como um regime político em que todos os cidadãos elegíveis participam igualmente — diretamente ou através de representantes eleitos — na proposição, no desenvolvimento e na criação de leis, exercendo o poder da governança através do sufrágio universal, ou seja, do voto.
Diante de todos os regimes políticos conhecidos até o momento, a democracia é festejada como o mais adequado, pois deveria representar a vontade do povo. Entretanto, a questão não é tão simples, pois o povo é formado por um conjunto de indivíduos com ideais diferentes, propósitos distintos e necessidades díspares.
No Brasil, considerando a quantidade de sua população, seria inviável exercer a democracia diretamente, ou seja, permitindo a cada cidadão votar sobre determinado assunto. Portanto, nosso regime democrático é indireto, elegendo representantes do povo para cargos políticos, seja na esfera federal, estadual, municipal ou distrital, outorgando a esses políticos o mandato para representar seus respectivos eleitores.
Indubitavelmente, a meu ver, uma das melhores definições para a democracia, segundo o prof. Leandro Karnal, é aquela dada por Jean-Jacques Rousseau: a democracia é imperfeita, mas perfectível.
Entretanto, a indagação que possivelmente desperte o maior interesse é se a ética e a democracia podem coexistir, dentro de um sistema de governo como o nosso, ou seja, presidencialista. E a resposta é que não só podem, como devem!
Todavia, a questão não é tão comezinha, como ensina o prof. Michael Sandel, de Harvard, visto que nem sempre é claro responder a indagação de que o que está sendo feito é a coisa certa a se fazer – afinal de contas, a política leva em consideração não apenas a vontade do povo, mas as ideologias dos partidos, os interesses de segmentos do mercado e as aspirações políticas e de poder por parte do político. Ser leal ao povo (diante da complexidade da vontade desse conjunto de pessoas), ser leal ao partido (que muitas vezes o apoiou e lhe coloca diante de considerável conflito de interesses) ou ser leal às suas convicções (nem sempre incólumes, sob o ponto de vista ético, eis que maculadas por ganhos pessoais ou conflitos pelo poder)?
Deturpações no regime democrático podem dificultar consideravelmente a coexistência da ética e da democracia, tais como cargos vitalícios, nepotismo, falta de transparência e excesso de poder centralizado na pessoa de um único indivíduo, seja no poder Legislativo, Executivo ou Judiciário.
Há aproximadamente 10 anos, a rede de TV Bandeirantes exibiu em seu “Jornal da Band” uma reportagem sobre os benefícios concedidos à classe política na Suécia, informando que deputados, enquanto exercem seus mandatos, recebem apartamentos funcionais de 18 a 40 m², sem direito à máquina de lavar roupa privativa ou a empregados domésticos; seus gabinetes têm 18 m², sem direito a assessores, secretários ou motoristas; a residência do Primeiro Ministro tem 300 m², mas não possui empregados para as tarefas domésticas.
Essas e outras informações parecem até mesmo utópicas, considerando o mesmo regime democrático que existe lá e aqui no Brasil. Mas a questão que se impõe é se o regime democrático é realmente o mesmo, se a conscientização sobre o dinheiro recolhido do contribuinte é a mesma e se o altruísmo de gestão das questões públicas supera os interesses pessoais.
Existem, entretanto, duas molas propulsoras para lapidar o regime democrático, dentro de valores morais sólidos, fortalecendo sua coexistência com a ética.
A primeira chama-se educação, fundamental para o desenvolvimento de qualquer país. É através dela que as pessoas podem melhorar sua condição socioeconômica, que o país pode se desenvolver tecnologicamente, que as desigualdades sociais são reduzidas e que os valores morais da população e de representantes do povo são aperfeiçoados.
A segunda chama-se combate à impunidade – ou, em inglês, um único termo: “enforcement”. Assim como, sob o aspecto ético, fazer o certo mereceria reconhecimento, punir os erros deveria ser igualmente uma premissa. A impunidade, independentemente de qual seja o argumento utilizado para proporcioná-la, estimula a conduta antiética, quando não criminosa.
O maior responsável por essa mudança no regime democrático é o povo, já que ele elege seus representantes, que irão deliberar sobre os seus interesses. Para que haja a evolução e aperfeiçoamento do regime democrático, pautado em princípios éticos, é preciso que a escolha de tais representantes leve em consideração o mesmo que as empresas consideram no momento de contratar um candidato: comportamentos, habilidades e atitudes. É por meio das atitudes que a ética se revelará presente ou não na democracia brasileira.