Quando a amizade leva ao fundo do poço

February 21, 2022

O Prof. Robert Henry Srour, docente da USP – a quem rendo aqui minhas homenagens, como um dos maiores e melhores pensadores a respeito de ética no Brasil –, descreve em sua magnífica obra “Ética Empresarial” uma interessante passagem do filme “Inimigo Íntimo”, de 1997.

Em uma das cenas do filme “The Devil’s Own” (“Inimigo Íntimo”), do diretor Alan J. Pakula, uma dupla de policiais de Nova York surpreende um jovem ladrão de rádios de carro em ação. Este encontra um revólver no porta-luvas do carro e sai com ele em desabalada carreira, depois de atirar de forma atabalhoada contra um dos policiais. O segundo policial, que está em seus calcanhares, o adverte para livrar-se da arma sob pena de ter que feri-lo. O jovem obedece. Enquanto esse policial vai recolher a arma, o primeiro policial alcança o fugitivo, dispara e mata-o com três tiros pelas costas.

Mas por quê?, pergunta o segundo policial.

Porque ia fugir, responde o primeiro.

Acontece que estavam em um beco sem saída. Percebendo a enrascada, o primeiro policial emenda:

Ia atirar em mim!

Mas o segundo policial apresenta-lhe o revólver recolhido. Vem então o motivo real:

O sujeito disparou vários tiros contra nós! Isso não pode ficar assim.

Em seguida, ele pega a arma das mãos do colega e deita-a ao lado do cadáver. Na sua concepção, o parceiro deveria acobertá-lo e ponto final.

Mais tarde, o segundo policial prestou depoimento na delegacia de polícia. Devia acobertar ou incriminar o outro? O que mais vale: a lealdade à justiça, às regras, ao uniforme ou a lealdade ao colega?

O caso da dupla de policiais ilustrada no filme acaba servindo, por analogia, para caracterizar inúmeras situações que ocorrem no mundo corporativo, quando, em razão de um laço de amizade, um profissional acaba omitindo ou encobrindo alguma conduta ilícita ou inapropriada de um colega de trabalho. E isso é muito mais comum do que se pensa…

Não obstante, a pergunta feita acima merece uma reflexão mais aprofundada, ou seja, o que vale mais: a lealdade à justiça, às regras, ao uniforme ou a lealdade ao colega, independentemente da sua conduta e dos resultados decorrentes dela? Logo, podemos estar discorrendo sobre uma fraude, um bullying, um furto, uma violação de uma política ou procedimento ou qualquer outra conduta inapropriada empreendida pelo nosso colega de trabalho.

A amizade deveria estar acima de tudo? Errar é humano e perdoar é divino? São tantas as divagações que obviamente acabam tornando mais complexa uma resposta quanto maior for o grau de amizade existente entre as partes.

Passando a examinar a questão sob o prisma da ética da convicção e da ética da responsabilidade, que respaldam as teorias deontológica e consequencialista, respectivamente, omitir-se ou encobrir a conduta ilícita ou inadequada de um colega de trabalho sob o argumento da amizade não encontraria respaldo algum. A ação correta seria corrigir o erro, sendo o relato o primeiro passo para isso. Além disso, o dever de defender o negócio que paga seu salário deveria prevalecer. Aí estão as duas justificativas segundo as teorias acima citadas.

E quanto ao ato de perdoar a conduta do colega de trabalho? Certamente, ao cogitar-se o perdão, um aspecto de suma importância merece reflexão: a motivação. Dolo e culpa acabam sendo um diferencial importante na tomada de decisão. No caso dos policiais, o que atira deliberadamente no ladrão o faz voluntariamente, por vontade própria, intencionalmente, ou seja, com dolo.

Todavia, utilizando a mesma estória como pano de fundo, se o policial, após o ladrão ter se livrado da arma, tivesse tropeçado com a sua arma na mão e essa tivesse disparado e acertado mortalmente o ladrão, tal fato poderia complicar sobremaneira a tomada de decisão do colega em encobrir o ato inadequado do primeiro policial.

Da mesma forma, o mundo corporativo pode colocá-lo diante desse dilema: falar a verdade e revelar a conduta inapropriada de um colega ou omitir-se, já que ele não teve a intenção de provocar o resultado, que acabou ocorrendo por uma imprudência, negligência ou imperícia?

Ainda que a conduta inapropriada tenha sido ocasionada por culpa do colega sem intenção de provocar o resultado, a ação correta a ser tomada é dar chance à empresa de corrigir o erro. E nessa hipótese, onde não houve dolo e existe amizade entre as partes, o correto seria uma conversa franca, no sentido daquele que agiu de maneira inadequada revelar o problema, assumindo o erro e, assim, corroborar o seu caráter e integridade perante a empresa.

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O Prof. Robert Henry Srour, docente da USP – a quem rendo aqui minhas homenagens, como um dos maiores e melhores pensadores a respeito de ética no Brasil –, descreve em sua magnífica obra “Ética Empresarial” uma interessante passagem do filme “Inimigo Íntimo”, de 1997.

Em uma das cenas do filme “The Devil’s Own” (“Inimigo Íntimo”), do diretor Alan J. Pakula, uma dupla de policiais de Nova York surpreende um jovem ladrão de rádios de carro em ação. Este encontra um revólver no porta-luvas do carro e sai com ele em desabalada carreira, depois de atirar de forma atabalhoada contra um dos policiais. O segundo policial, que está em seus calcanhares, o adverte para livrar-se da arma sob pena de ter que feri-lo. O jovem obedece. Enquanto esse policial vai recolher a arma, o primeiro policial alcança o fugitivo, dispara e mata-o com três tiros pelas costas.

Mas por quê?, pergunta o segundo policial.

Porque ia fugir, responde o primeiro.

Acontece que estavam em um beco sem saída. Percebendo a enrascada, o primeiro policial emenda:

Ia atirar em mim!

Mas o segundo policial apresenta-lhe o revólver recolhido. Vem então o motivo real:

O sujeito disparou vários tiros contra nós! Isso não pode ficar assim.

Em seguida, ele pega a arma das mãos do colega e deita-a ao lado do cadáver. Na sua concepção, o parceiro deveria acobertá-lo e ponto final.

Mais tarde, o segundo policial prestou depoimento na delegacia de polícia. Devia acobertar ou incriminar o outro? O que mais vale: a lealdade à justiça, às regras, ao uniforme ou a lealdade ao colega?

O caso da dupla de policiais ilustrada no filme acaba servindo, por analogia, para caracterizar inúmeras situações que ocorrem no mundo corporativo, quando, em razão de um laço de amizade, um profissional acaba omitindo ou encobrindo alguma conduta ilícita ou inapropriada de um colega de trabalho. E isso é muito mais comum do que se pensa…

Não obstante, a pergunta feita acima merece uma reflexão mais aprofundada, ou seja, o que vale mais: a lealdade à justiça, às regras, ao uniforme ou a lealdade ao colega, independentemente da sua conduta e dos resultados decorrentes dela? Logo, podemos estar discorrendo sobre uma fraude, um bullying, um furto, uma violação de uma política ou procedimento ou qualquer outra conduta inapropriada empreendida pelo nosso colega de trabalho.

A amizade deveria estar acima de tudo? Errar é humano e perdoar é divino? São tantas as divagações que obviamente acabam tornando mais complexa uma resposta quanto maior for o grau de amizade existente entre as partes.

Passando a examinar a questão sob o prisma da ética da convicção e da ética da responsabilidade, que respaldam as teorias deontológica e consequencialista, respectivamente, omitir-se ou encobrir a conduta ilícita ou inadequada de um colega de trabalho sob o argumento da amizade não encontraria respaldo algum. A ação correta seria corrigir o erro, sendo o relato o primeiro passo para isso. Além disso, o dever de defender o negócio que paga seu salário deveria prevalecer. Aí estão as duas justificativas segundo as teorias acima citadas.

E quanto ao ato de perdoar a conduta do colega de trabalho? Certamente, ao cogitar-se o perdão, um aspecto de suma importância merece reflexão: a motivação. Dolo e culpa acabam sendo um diferencial importante na tomada de decisão. No caso dos policiais, o que atira deliberadamente no ladrão o faz voluntariamente, por vontade própria, intencionalmente, ou seja, com dolo.

Todavia, utilizando a mesma estória como pano de fundo, se o policial, após o ladrão ter se livrado da arma, tivesse tropeçado com a sua arma na mão e essa tivesse disparado e acertado mortalmente o ladrão, tal fato poderia complicar sobremaneira a tomada de decisão do colega em encobrir o ato inadequado do primeiro policial.

Da mesma forma, o mundo corporativo pode colocá-lo diante desse dilema: falar a verdade e revelar a conduta inapropriada de um colega ou omitir-se, já que ele não teve a intenção de provocar o resultado, que acabou ocorrendo por uma imprudência, negligência ou imperícia?

Ainda que a conduta inapropriada tenha sido ocasionada por culpa do colega sem intenção de provocar o resultado, a ação correta a ser tomada é dar chance à empresa de corrigir o erro. E nessa hipótese, onde não houve dolo e existe amizade entre as partes, o correto seria uma conversa franca, no sentido daquele que agiu de maneira inadequada revelar o problema, assumindo o erro e, assim, corroborar o seu caráter e integridade perante a empresa.

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