Em 22 de outubro deste ano, a Comissão Interministerial de Contratações Públicas para o Desenvolvimento (CICS), vinculada ao Ministério da Gestão e da Inovação, publicou a Resolução 4/2024 instituindo dois tipos de margem de preferência (MP) para a compra de medicamentos em licitações.
A primeira é a MP normal (MPN), a qual permite que seja pago por um medicamento nacional até 5% acima do melhor preço ofertado por um medicamento importado.
A segunda é a MP adicional (MPA), a qual permite que seja pago por um medicamento nacional com IFA também nacional até 15% acima do melhor preço ofertado por um medicamento importado (já incluindo os 5% da MPN) ou até 10% acima do melhor preço ofertado por um medicamento nacional, mas produzido com IFA importado. A resolução entrou em vigor no dia 11/11/2024.
Não é a primeira vez que o Brasil institui MPs para a compra de medicamentos. Durante a vigência da antiga lei de licitações (Lei 8.666/1993), o Decreto 7.713/2012 regulamentava o seu art. 3º e atribuía diferentes MPs a medicamentos e IFAs. Como um todo, as MPs foram aplicadas somente até 30/3/2017.
A partir da entrada em vigor da nova Lei de Licitações em janeiro de 2024 (Lei 14.133/2021), o tema voltou à tona. O seu art. 26 manteve a possibilidade de aplicação das MPs, tendo sido regulamentado pelo Decreto 11.890/2024 ainda no mesmo mês. Estabeleceu-se que a MPN poderá ser de até 10% para “bens manufaturados e serviços nacionais”, e que a MPA poderá ser de até mais 10% para os bens “resultantes de desenvolvimento e inovação tecnológica no País” (i.e., até o limite de 20%).
Quando publicado, o Decreto 11.890/2024 permitia a aplicação de MPs somente para a competição entre produtos nacionais e estrangeiros, dinâmica que parecia não estar em consonância com o art. 26 da lei. Afinal, o legislador claramente optou por conceder uma MP adicional para produtos nacionais “resultantes de desenvolvimento e inovação tecnológica no país”, de modo a diferenciá-los daqueles produtos nacionais sem esse “plus” tecnológico.
Provavelmente por isso, em 11/10/2024, o Decreto 11.890/2024 foi alterado pelo Decreto 12.218/2024 para permitir a aplicação da MPA também para a competição entre produtos nacionais e produtos nacionais que atendam a tal critério adicional.
O Decreto 11.890/2024 também criou a CICS, atribuindo-lhe competência para definir os produtos aos quais deverão ser aplicadas MPs e os critérios para tanto. E foi no exercício dessa competência que a CICS publicou a Resolução 4/2024[1], determinando a aplicação das MPs de até 15% (5% da MPN + 10% da MPA) para a compra, pela Administração Pública federal (e pela estadual, distrital e municipal, quando houver repasse de verbas da União[2]), dos medicamentos que constam no anexo da Resolução 4/2024) e atendam aos critérios definidos.
Para ser considerado um medicamento nacional e fazer jus à MPN (“regra de origem”), o medicamento deverá ter registro na Anvisa e ter sido “fabricado” no país. Definiu-se o termo “fabricação” como sendo a realização de “todas as operações envolvidas no preparo de determinado medicamento, incluindo a aquisição de materiais, produção, controle de qualidade, liberação, armazenamento, expedição de produtos acabados e os controles relacionados” (art. 2º, VII).
Essa definição permite duas interpretações. A primeira: a realização de qualquer uma das etapas descritas na definição configuraria “fabricação” do medicamento no país. A segunda: é preciso realizar todas as etapas descritas para ter o benefício da MPN. Esta última parece ser a mais adequada considerando o objetivo das MPs, que é maximizar a produção de medicamentos em território nacional.
A primeira interpretação permitiria que empresas que realizassem poucas ou simples etapas da fabricação do produto fossem beneficiadas pela MPN. De todo o modo, a definição admite certa flexibilização, eis que, ao incluir como etapa a “aquisição de materiais”, parece permitir a importação de insumos necessários para a fabricação, como o próprio IFA.
Tanto que, quando o IFA é fabricado nacionalmente, permite-se a aplicação da MPA beneficiando a empresa que fez a nacionalização desta etapa. É evidente, contudo, que a aquisição permitida é somente de “materiais”, isto é, insumos para a fabricação do produto, e não de partes do produto já produzidas. Essa também parece ser a visão da própria CICS, vide Nota Técnica SEI 44259/2024[3] (que instruiu a publicação da Resolução 4/2024).
Já para ser considerando um medicamento nacional resultante de desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no país e fazer jus à MPA (“regra de qualificação”), o medicamento deverá, além de atender aos critérios da MPN, ter sido fabricado “utilizando exclusivamente IFA cujas etapas produtivas foram integralmente realizadas em território nacional a partir do material de partida” (art. 2º, XI). Ou seja, a Resolução 4/2024 somente permite a importação do material de partida, devendo, a partir daí, serem realizadas todas as etapas no país[4].
A dinâmica até aqui explicada, estabelecida pela legislação mencionada (a Lei 14.133/2021, o Decreto 11.890/2024 e a Resolução 4/2024 da CICS) não consiste em uma inovação substancial ao regime anterior de MPs. O ponto mais sensível do novo regime nos parece estar na dinâmica de comprovação do cumprimento dos critérios para fins de aplicação das MPs.
A Resolução 4/2024 até exige, em seu art. 7º, que os licitantes comprovem que os medicamentos ofertados atendem às regras de origem e qualificação. No entanto, não especifica de que forma e nem em que momento essa comprovação deverá ser feita no âmbito do certame.
Aliás, essa comprovação parece que sequer será exigida na prática. Assim que publicada a primeira Res. da CICS (Resolução 1/2024), o governo disponibilizou um tutorial intitulado “Cadastro de itens com direito à margem de preferência”[5], o qual indica que o licitante deve informar o país de origem do item licitado e, sendo o caso, indicar se ele se enquadra em uma ou em ambas as MPs.
Ou seja, basta que seja feita uma simples declaração pelo licitante. O governo também esclarece que, caso o licitante vencedor tenha declarado que possuía direito às MPs, mas, na verdade, não o tinha, caberá ao agente de contratação ou ao pregoeiro realizar diligências para esclarecer a situação e, sendo o caso, desclassificar a proposta[6].
A Nota Técnica SEI 44.259/2024 também não esclarece a questão. Ela apenas menciona que os titulares do registro dos medicamentos devem prestar à Anvisa todas as informações sobre seu processo produtivo (como, aliás, já o fazem como parte da interação regular com a agência).
E, com base nessas informações, será possível “monitorar as condições de produção e, se for o caso, inclusive verificar se um determinado lote de medicamentos foi efetivamente produzido em território nacional”. Ou seja, a Nota Técnica parece querer contar com a ajuda da Anvisa na verificação do cumprimento dos requisitos para obtenção das MPs, o que faz sentido. Mas a questão é: como?
Há alguma publicidade sobre o local de fabricação de um produto, mas essa publicidade não é completa, nem específica ao ponto de permitir a identificação das etapas realizadas no país. Ou seja, concorrentes poderão ter dificuldade em fiscalizar o cumprimento dos requisitos uns pelos outros.
A própria Anvisa também poderá ter dificuldade em dar o apoio desejado. Primeiro, porque seria mais uma função para a agência, que já se encontra muito atarefada, mas com uma força de trabalho que foi reduzida drasticamente nos últimos anos. Segundo, porque a Anvisa estará sempre limitada às informações que constam no processo de registro do produto, não podendo certificar o que de fato acontece na prática (a título de exemplo, pensa-se em um produto para o qual há mais de um fabricante aprovado – um nacional e um estrangeiro – , hipótese na qual não seria possível à agência certificar qual deles teria fabricado determinado lote do produto).
Há, portanto, lacunas que ainda não foram preenchidas, mas que são essenciais para garantir que as MPs serão aplicadas apenas aos produtos que atendam às regras de origem e qualificação da Resolução 4/2024 e, com isso, cumprirão a sua finalidade: usar o poder de compra do Estado para impulsionar o desenvolvimento do complexo industrial da saúde, fortalecendo o SUS. Será importante acompanhar a evolução do assunto na prática.
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