Lei 14.874 e obstáculos para Brasil virar hub de pesquisa clínica – parte 2

September 24, 2024

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Jota

Sempre causou estranheza que somente em nosso país haja obrigação de fornecimento pós-estudo por prazo indeterminado

Na primeira parte deste artigo, questionamos se a Lei 14.874/2024 resolveu, pelo menos no plano normativo, um dos principais obstáculos que impedem o Brasil de ser um hub de pesquisas clínicas: a burocracia e a morosidade do processo de aprovação dos protocolos de pesquisa.

Nessa segunda parte, fazemos a mesma análise, mas com foco em outro obstáculo: a obrigação de patrocinadores de fornecer aos participantes o produto experimental uma vez encerrado o estudo (fornecimento pós-estudo) por prazo indeterminado.

Antes da Lei 14.874, o fornecimento pós-estudo era tratado pelas resoluções do Conselho Nacional de Saúde (CNS)[1], especialmente pela Resolução 466/2012, que a estabelecia exigindo o fornecimento “por tempo indeterminado”. Assim, o produto deveria ser fornecido entre o fim do estudo e a sua aprovação regulatória e lançamento no mercado – o que é natural, até para se evitar uma interrupção no tratamento – mas também ad eternum¸ sem qualquer previsão na norma para o seu fim. A única flexibilização prevista era para doenças “ultrarraras”. O fornecimento deveria ocorrer pelo prazo de até “cinco anos após obtenção do registro” [2].

Sempre causou estranheza aos patrocinadores a existência, somente no Brasil, de uma obrigação de fornecimento pós-estudo por prazo indeterminado. A prática internacional predominante é diversa: somente alguns países exigem o fornecimento, mas por prazo determinado ou com previsão de hipóteses de encerramento da obrigação. A Interfarma, com base em estudo da IQVIA atualizado em dezembro de 2022[3], aponta que a percepção negativa dos patrocinadores se dava, primeiro, em razão do fator custo do fornecimento, mas também por questões de ordem operacionais e regulatórias, decorrentes naturalmente de se tratar de um produto não aprovado.

E como a Lei 14.874 tratou, então, da obrigação de fornecimento pós-estudo? O legislador estabeleceu uma dinâmica razoável: antes do início do estudo, o patrocinador e o pesquisador deverão submeter ao CEP o “plano de acesso pós-estudo, com a apresentação e justificativa da necessidade ou não de fornecimento gratuito do medicamento experimental” (art. 30, caput). Um exemplo de situação em que o fornecimento não seria necessário: estudo clínico com medicamentos de dose única ou de ciclo de tratamento compatível com a duração do estudo.

Ao término do estudo, o pesquisador responsável deverá realizar uma avaliação sobre a necessidade de continuidade do tratamento experimental para cada participante, após ouvidos o patrocinador e o próprio participante (art. 31, caput e §1º). Essa avaliação será detalhada no regulamento a ser editado. No entanto, a Lei 14.874 estabelece que o fornecimento pós-estudo deverá ser realizado sempre que for considerado a melhor opção para a condição clínica do participante e apresentar relação risco-benefício mais favorável em comparação aos demais tratamentos disponíveis (art. 31, §2º).

Quando a conclusão for pela necessidade de continuidade do tratamento experimental, o patrocinador deverá elaborar o que a lei chamou de “programa de fornecimento pós-estudo”, contendo a “descrição detalhada sobre a estratégia” para o fornecimento (art. 2º, XLIV, e art. 30, §1º). Importantíssimo acompanhar o eventual tratamento que o futuro regulamento dará para o plano. Não obstante, o fornecimento pós-estudo deverá se dar “por prazo determinado” (art. 30, §2º), sendo esse “pequeno detalhe”, sem dúvida, uma das diferenças mais relevantes trazidas pela lei.

A compreensão correta do que significa exatamente ter o fornecimento pós-estudo um prazo determinado passa pela leitura de outros dispositivos da Lei 14.874. No art. 33, o legislador estabeleceu hipóteses em que o fornecimento se encerra independentemente do prazo fixado para a obrigação.

Tais hipóteses estão relacionadas à ocorrência de situações imprevisíveis como a declaração de vontade do próprio participante, a cura da sua doença ou a inclusão do medicamento experimental no SUS. Assim, é legítimo entender que a definição do prazo determinado pode se dar a partir de razões diversas daquelas previstas no art. 33, como razões de ordem econômica, como já é feito atualmente para as doenças “ultrarraras”.

De qualquer forma, entre as hipóteses de interrupção do art. 33, duas delas merecem considerações. A primeira é a do inciso VII, segundo a qual o fornecimento pós-estudo poderá ser interrompido após a “disponibilidade do medicamento experimental na rede pública de saúde”. Por disponibilidade, entende-se que se deve considerar a previsão do art. 25 do Decreto 7.646/2011, a qual determina que, a partir da publicação da decisão de incorporação do tratamento ou medicamento ao SUS, este deverá passar a ser efetivamente disponibilizado no prazo máximo de 180 dias. Ou seja, passado tal período, estabelece a Lei 14.874 que a responsabilidade do fornecimento do produto experimental, a essa altura já aprovado pela Anvisa, será do SUS, não mais do patrocinador.

Parece óbvio pontuar isso, mas a obrigação do patrocinador se encerra, não persistindo mesmo subsidiariedade em relação à obrigação do SUS. Também não há que se cogitar relação de solidariedade como já se decidiu no passado (equivocadamente, em nosso entender)[4]. Isso porque “a solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes”, nos termos do art. 265 do Código Civil. E, nesse caso, a Lei 14.874 não prevê tal solidariedade. Também não há vínculo de qualquer outra natureza.

Tal esclarecimento é relevante, por exemplo, para o cenário em que, antes da incorporação ao SUS do medicamento experimental (agora já aprovado), o participante decide buscar no Judiciário o seu fornecimento por algum dos entes federativos. E o fornecimento será feito, já que, conforme entendimento do STJ (tema 106), medicamentos mesmo não incorporados ao SUS devem ser fornecidos se ineficazes as opções disponíveis. Nesse cenário, poderia o ente federativo entender que, nos termos do art. 31, §4º, da Lei 14.874, o fornecimento pós-estudo antes da incorporação ao SUS é obrigação do patrocinador, devendo ele, pois, assumir a obrigação diretamente ou até mesmo reembolsar o custo incorrido.

Todavia, tal pretensão, já tentada no passado[5], não procede. Apesar de as obrigações do patrocinador e do Estado terem prestação idêntica (fornecimento do medicamento experimental), elas possuem origem e fundamentos diferentes (a obrigação do patrocinador tem origem na Lei 14.874 e a dos entes federativos nos arts. 6º e 196 da Constituição Federal, e art. 6º, I, d da Lei 8.080/1990). E nesse caso não há uma previsão legal estabelecendo a obrigação de ressarcimento pelo patrocinador, como há no art. 32 da Lei 9.656/1998, por exemplo, para as operados de planos de saúde quando seus beneficiados são atendidos no SUS.

A segunda hipótese em que o fornecimento pós-estudo poderia ser interrompido seria a do inciso VI, após o “transcurso do prazo de cinco anos, contado da disponibilidade comercial do medicamento experimental no país”. Usa-se as palavras “poderia” e “seria” porque essa hipótese foi vetada pelo presidente da República, o que tem sido objeto dos maiores debates sobre o tema desde a publicação da lei.

A justificativa do veto aponta que “em que pese a boa intenção do legislador, a proposição legislativa contraria o interesse público ao estabelecer prazo de cinco anos para a continuidade do fornecimento gratuito do medicamento experimental após o encerramento do estudo”, já que, atualmente, esse fornecimento deve se dar por tempo indeterminado. Dessa forma, “a interrupção da oferta do medicamento no período pós-estudo fere os direitos dos participantes de pesquisa e compromete o eventual desenvolvimento de pesquisas éticas baseadas em princípios de dignidade, da beneficência e da justiça”.

Alguns interpretam que o veto, na prática, teria impacto para além do inciso VI do art. 33, pondo fim não somente à hipótese de interrupção nele prevista como também à regra geral de que a obrigação de fornecimento pós-estudo, agora, deverá ter um prazo determinado (aquela do art. 30, §2º). Ou seja, trazendo de volta a regra antiga de fornecimento ad eternum. Essa interpretação é perigosa, até porque poderá vir a ser adotada pelos próprios CEPs com a justificativa de ampliar ao máximo proteção dos participantes.

Mas não há fundamentos para isso. A análise da tramitação do PL deixa muito claro que um dos principais objetivos do legislador foi acabar com o prazo indeterminado até então previsto na regulação do CNS. Após inclusão das previsões de que o pesquisador e o patrocinador deveriam apresentar o plano e o programa de fornecimento pós-estudo, entendeu-se que o fornecimento deveria se dar “pelo tempo aprovado em plano específico”. O então deputado Hiran Gonçalves chegou inclusive a afirmar que a limitação temporal da obrigação “é essencial para que o Estado não desestimule ainda mais as iniciativas no campo da pesquisa e desenvolvimento de fármacos inovadores, em especial os voltados para doenças graves e raras[6].

Além disso, o veto presidencial se deu tão somente com relação a um dos eventos inicialmente previstos para a interrupção do fornecimento pós-estudo, qual seja, o transcurso do prazo de 5 anos após a disponibilização comercial do medicamento, do inciso VI. Isso não tem nenhum impacto nas demais hipóteses de interrupção do art. 33, tampouco na previsão de que, agora, essa obrigação do patrocinador deverá se dar por prazo determinado a ser previsto no programa de fornecimento pós-estudo, a qual segue prevista no art. 30, §2º, da Lei 14.874.

É evidente que a derrubada do veto será muito importante para possibilitar que o Brasil atraia cada vez mais estudos daqui para frente, já que garantirá um prazo máximo razoável para o fornecimento do medicamento experimental para todo e qualquer tipo de estudo. Até porque, do contrário, imagina-se que a tendência por parte das autoridades éticas será a de esticar ao máximo o período dessa proteção. Mas isso não significa que a eventual manutenção do veto terá como consequência prática (re)atribuir aos patrocinadores tal obrigação por prazo indeterminado, implicando retrocesso total aos avanços trazidos pela Lei 14.874/2024.

1. Resoluções CNS 466/2012 (item III. 3, d), 251/1997 (item IV.1, m), e 563/2017 (art. 3º).

2. Resolução CNS 563/2017 (art. 3º).

3. INTERFARMA. A importância da pesquisa clínica para o Brasil. v. dez/2022, p. 35 e 36.

4. TJRS, 7ª Câmara Cível, Rel. Des. Liselena Schifino Robles Ribeiro, Apelação Cível 0194114-12.2012.8.21.7000, julgado em 25/jul/2012.

5. Faz-se referência às ACPs nº 1021549-02.2014.8.26.0053 e 1021557-76.2014.8.26.0053, que tramitaram na justiça estadual de São Paulo. O Estado de São Paulo visava o ressarcimento de valores despendidos com a compra medicamentos objeto de estudos clínicos, demandados judicialmente por ex-participantes. A primeira ação foi julgada improcedente, tendo o TJSP confirmado a sentença por ausência de previsão legal em vigor à época do fato que impusesse ao laboratório a obrigação de fornecimento. Já a segunda, apesar de julgada procedente inicialmente, teve a sentença reformada pelo TJSP sob o fundamento de que, além da inexistência de previsão legal nesse sentido, eventual obrigação do patrocinador não retiraria do Estado a sua responsabilidade de fornecer gratuitamente medicamento à população.

6. Parecer do deputado Hiran Gonçalves na Comissão de Seguridade Social e Família, em abril de 2019.

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