Em 19 de abril de 2024, no âmbito da 6ª Reunião Ordinária Pública, a Diretoria Colegiada da Anvisa (DICOL) decidiu por manter a proibição, no Brasil, da comercialização dos Dispositivos Eletrônicos para Fumar (DEFs). Formalmente, a Anvisa encerrou a Consulta Pública 1.222/2023, à qual submeteu a minuta de norma que editou implementando o que decidira ao final da análise de impacto regulatório aprovada em 6 de julho de 2023: manter a proibição e implementar ações adicionais não normativas visando a reduzir o consumo.
São inúmeras as críticas feitas à análise de impacto regulatório e, consequentemente, à própria decisão da Anvisa no seu aspecto técnico. Tais críticas, todavia, não serão tratadas aqui. O ponto que se quer levantar é outro: pode a Anvisa proibir toda uma categoria de produtos, a qual nas suas próprias palavras engloba “numerosas variações”, como se o aspecto técnico relativo aos riscos no seu uso fosse o único aspecto relevante? Essa pergunta pode vir a ser respondida em breve pelo Congresso e/ou pelo Judiciário.
No Congresso, há pelo menos dois projetos de lei propondo a permissão da comercialização dos DEFs. Há o PL 3.352/2021, do Deputado Kim Kataguiri, que contém apenas 3 artigos e se limita a enquadrar os DEFs e sinônimos como cigarros “para todos os fins”, sujeitando sua comercialização e uso às exatas mesmas normas aplicadas aos cigarros convencionais. E há também o projeto de autoria da Senadora Soraya Thronicke (PL 5.008/2023) que, com 37 artigos, propõe as bases legais para um marco regulatório completo para a comercialização dos DEFs. Mas poderia o Congresso, por meio de lei, reverter a decisão da Anvisa passando a permitir a comercialização dos DEFs? Um olhar para os precedentes do Supremo em situações semelhantes mostra que sim.
Em 2020, o STF julgou a ADI 5501 proposta pela Associação Médica Brasileira contra a Lei 13.269/2016, a qual autorizou o uso da fosfoetanolamina sintética (“pílula do câncer”) por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna. A Lei foi promulgada não obstante tivesse a Anvisa pública e formalmente se manifestando contrariamente ao uso da fosfoetanolamina como medicamento, dada a ausência de estudos clínicos capazes de comprovar sua eficácia e segurança. O STF por maioria (6 a 3)1 entendeu competir privativamente à Anvisa fazer uma análise rigorosa de dados de segurança e eficácia de quaisquer substâncias químicas, de modo que não poderia o Congresso permitir o uso da substância de forma abstrata e genérica, dispensando a necessidade de registro sanitário e, consequentemente, realização de todos os testes necessários para comprovar a segurança e eficácia da substância. O STF entendeu que o Congresso foi omisso no seu dever de tutelar a saúde da população2. Vale apontar que, em seu voto de divergência, o Min. Edson Fachin reconheceu que a Anvisa não possui competência exclusiva para autorizar a comercialização de toda e qualquer substância, sendo possível o Congresso fazê-lo por meio de lei. Todavia, tal norma deve ser minuciosa, de modo que seja respeitado o princípio da proibição de retrocesso e mantida a proteção suficiente ao direito à saúde.
Já em 2021, o STF julgou a ADI 5779, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde contra o art. 1º da Lei 13.454/2017, que autorizara a comercialização de substâncias anorexígenas. A Lei foi promulgada contrariando decisão da Anvisa, formalizada por meio da RDC 50/2014, que proibira a prescrição e a dispensação de medicamentos contendo substâncias desse gênero. O STF declarou o artigo inconstitucional (7 a 3)3, por entender que (i) o Congresso não impôs cuidados mínimos na edição da Lei para garantir a proteção suficiente ao direito à saúde por meio da garantia da segurança dos produtos; e (ii) a publicação da Lei nos termos em que ocorreu tornaria impossível a realização de juízo técnico pela Anvisa, impedindo a sua atuação, o que é vedado, pois cabe a Anvisa avaliar se determinada substância cumpre os requisitos de segurança, eficácia e qualidade.
Estes precedentes mostram que o STF, em sua maioria, entende ser legítimo que o Congresso atue no tema comercialização de produtos sujeitos à regulação sanitária, mesmo que discordando da Anvisa. O que o STF indica claramente é que há limites para esta atuação legislativa: ela não pode ser insuficiente no sentido de simplesmente autorizar a comercialização do produto, devendo estabelecer o arcabouço legal necessário que garanta a proteção à saúde da população (ou seja, estabelecer os standards de atuação das agências), mas deixando espaço para a atuação técnica da Anvisa, inclusive para complementar tal arcabouço via exercício do seu poder normativo.
O PL 5.008/2023 cumpre perfeitamente bem esse requisito, eis que trata de pontos relevantes para a comercialização, como o registro perante a Anvisa; as especificações e proibições em termos de composição para cada um dos diferentes tipos de produto (com ou sem nicotina, com ou sem tabaco, por exemplo); requisitos para a avaliação do risco toxicológico do produto, usando como parâmetro os cigarros convencionais; restrições de propaganda incluindo requisitos para suas embalagens, com proibições em grande nível de detalhe, voltadas para inibir o consumo por menores; a instituição de um sistema de farmacovigilância; e até mesmo questões de ordem fiscal. O PL 5.008 trata de todos esses pontos, mas deixa espaço para a regulamentação pelo INMETRO (para questões não sanitárias referentes aos critérios de funcionamento dos dispositivos, como o seu carregamento elétrico e especificações da bateria), para a regulação pela ANATEL (para as questões não sanitárias, referentes aos critérios de funcionamento quanto à sua comunicabilidade, como via tecnologia bluetooth), bem como para a regulação pela própria Anvisa.
Assim, o PL 5.008 cumpre o papel exigido pela jurisprudência do STF para um exercício legitimo de competência legislativa, mesmo que contrariamente à opinião técnica da Anvisa. Afinal, é o Congresso o lugar adequado para que a sociedade, por meio de seus representantes, tome uma decisão informada e não paternalizada sobre o tema, considerando todos os aspectos existentes (como a liberdade individual na decisão de consumo; a efetividade do cenário atual na proteção dos usuários contra produtos de má qualidade e da prevenção do uso pelos jovens; os impactos econômicos de ordem fiscal e geração de empregos; e o impacto em segurança pública dado o volume de contrabando) e não somente o aspecto relativo à segurança do uso do produto, considerando pela Anvisa na sua decisão de manter a proibição.
Agora, se por um lado o Congresso pode por meio do PL 5.008 responder à pergunta introdutória deste artigo de forma propositiva (estruturando o marco legal para a futura regulação), por outro lado, o Judiciário também pode respondê-la, mas de forma corretiva (ao dar o contorno correto ao debate, retirando entre as decisões possíveis a proibição já definida pela Anvisa). E nesse papel o cenário de precedentes do STF também é positivo.
Controvérsia similar já foi posta à apreciação do Supremo em 2012 no julgamento da ADI 48744. Proposta pela Confederação Nacional da Indústria, nesta ADI se buscou a aplicação de interpretação conforme ao art. 7°, XV da Lei 9.782/1999, especificamente ao seu trecho final, no sentido de ser inconstitucional a interpretação da Anvisa de que, com base no dispositivo, poderia proibir insumos e produtos em caráter geral e abstrato. Essa foi a interpretação usada pela Anvisa para editar a RDC 14/2012, por meio da qual proibiu a importação e a comercialização de produtos fumígenos derivados do tabaco que contivessem qualquer um dos aditivos de sabores nela listados. A interpretação da Anvisa e, consequentemente, a própria RDC 14/2012, só não foram declaradas inconstitucionais, pois houve um empate em 5 a 5, faltando, o quórum necessário (o Min. Barroso se declarou suspeito à época).
Entre os fundamentos adotados pelos ministros que votaram pela inconstitucionalidade está o fato de que a lei instituidora da Anvisa, a Lei 9.782/99, não dispõe de “standards” que permitissem a proibição total de uma espécie de produtos fumígenos pela Anvisa, tratando-se qualquer pretensão nesse sentido de desrespeito ao princípio da legalidade . Os ministros também entenderam que o supracitado art. 7º, XV, ao prever que a Anvisa pode proibir “comercialização de produtos e insumos, em caso de violação da legislação pertinente ou de risco iminente à saúde”, deve ser interpretado no sentido de que o trecho “risco iminente à saúde” se refere a um risco “extraordinário, localizado, concreto e determinado” . Ou seja, não se aplica ao risco ordinariamente associado a produtos submetidos ao controle e fiscalização da Agência, como é o caso dos produtos fumígenos. Nesse ponto, a então Min. Rosa Weber, em que pese ter votado pela constitucionalidade da RDC 14/2012, destacou que os riscos ordinariamente associados a determinado produto não atraem a incidência da hipótese de “risco iminente à saúde”, destinada, em realidade, para tratar de situações específicas de caráter anormal, como ocorre quando se determina o recolhimento de um lote de medicamentos com defeito de fabricação. É certo que não há níveis seguros para o consumo de produtos fumígenos, sendo o seu uso regular capaz de trazer danos à saúde por si só. Ainda assim, conforme inclusive ressaltado pelo Min. Alexandre de Moraes, a legislação autoriza a comercialização desses produtos, com diversas restrições.
Todos esses fundamentos são relevantes para o debate da constitucionalidade da proibição dos DEFs pela Anvisa. Desde o julgamento da ADI 4.874 a composição do STF mudou, tendo sido substituídos 3 dos ministros que votaram pela constitucionalidade da proibição geral e abstrata da Anvisa para os aditivos de cigarros, e dos 5 ministros que votaram pela inconstitucionalidade, 4 ainda permanecem na Eg. Corte. Assim, caso a decisão da Anvisa de manter a proibição sob os DEFs chegue ao STF, haverá um debate interessante sobre os limites impostos à atuação da Agência frente outros valores também protegidos constitucionalmente, como os da autonomia da vontade (art. 5º, II) e da liberdade econômica (art. 170, p. único), isonomia e o da proporcionalidade.
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