A Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013 (Lei Anticorrupção ou simplesmente LAC) está próxima de completar dez anos. Por outro lado, divulga-se que a Transparência Internacional Brasil apresentou, em 2022, um relatório à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre o "desmantelamento contínuo das estruturas criadas ao longo dos últimos anos, para combater a corrupção no país".
Sem adentrar a pertinência ou não do relatório com a realidade, fato é que após quatro anos da promulgação da última convenção de combate à corrupção, o Brasil conheceu o PL 6.826/2010, que veio a se transformar três anos depois na Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013. De lá para cá, houve um acentuado crescimento no número de processos de responsabilização de pessoas jurídicas envolvidas em atos lesivos à administração pública (conhecidos como PARs), instaurados com base na LAC.
Os órgãos de fiscalização, liderados pela Controladoria Geral da União (CGU), têm se valido da responsabilização objetiva por ela introduzida que, na prática, dispensa que o órgão acusador tenha que reunir provas robustas antes de aplicar sanções severas (como multas de até 20% do faturamento e publicação da sanção condenatória), capazes de fazer naufragar qualquer empresa.
O que se tem visto em âmbito administrativo sancionador, ao contrário do que alude o relatório da TI Brasil, é o recrudescimento do poder punitivo estatal. No âmbito dos PARs houve um aumento de 296% nas sanções aplicadas entre 2020 e 2021 (conforme dados da CGU), sem que o Poder Judiciário tenha tido reais oportunidades de se debruçar com profundidade sobre o alcance e as eventuais exceções à aplicação da responsabilidade objetiva punitiva das pessoas jurídicas, a qual vem ocorrendo de forma, no mínimo, constitucionalmente assistemática.
Não se há de negar que a LAC se tornou um importante instrumento para coibir atos de corrupção lesivos à administração pública nacional e estrangeira, entretanto acabou sendo dotada de um viés punitivo passível de conduzir a excessos e efeitos colaterais nefastos para o necessário ambiente de segurança e crescimento econômico.
A adoção interna de medidas e normas para lidar com a corrupção foi fruto de três importantes compromissos internacionais assumidos pelo Brasil: a Convenção de Combate à Corrupção de Funcionários Estrangeiros em Transações Comerciais e internacionais da OCDE; a Convenção Interamericana Contra a Corrupção da OEA e a Convenção da ONU Contra a Corrução, promulgadas respectivamente em 2000, 2002 e 2006.
Na esteira desses compromissos, a LAC nasceu em 2013, em um contexto político de pressão pela persecução e punição de pessoas físicas e jurídicas envolvidas em uma série de escândalos de corrupção. O resultado foi a aprovação de uma Lei dotada de dois institutos que a tornam especialmente poderosa no exercício do poder punitivo estatal: a "responsabilização objetiva das pessoas jurídicas" [1] e a denominada "desnecessidade de dupla imputação obrigatória" [2]. Pelo primeiro, a pessoa jurídica pode ser responsabilizada e punida independente da demonstração de dolo ou culpa de quem quer que seja; e pelo segundo, ela poderá ser responsabilizada independentemente de ter havido a imputação individual das pessoas naturais em outra ou mesma instância.
No concernente à responsabilidade objetiva, muito se fala que ela seria fruto de mera importação do Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) dos EUA, e do U.K. Bribery Act (UKBA) do Reino Unido, mas a responsabilização nesses diplomas ocorre de modo bem diferente. Em suma, o FCPA requer standard de prova beyond a reasonable doub (além da dúvida razoável), pela qual a intenção do agente corruptor deve ser necessariamente demonstrada para que haja incidência da penalidade estipulada pela lei para o funcionário e para a empresa nas ações penais. Por sua vez, o UKBA admite a exclusão da responsabilidade no caso de a empresa comprovar que possui um programa de integridade efetivo (isto é, que adotou todas as medidas preventivas possíveis para uma cultura de integridade, e que a conduta do funcionário foi isolada).
Na hipótese da FCPA, o que se tem é responsabilidade punitiva que não deixa de aferir elementos subjetivos da conduta corruptora (intenção além de qualquer dúvida razoável). Já a UKBA ao menos abre um viés para a aferição de imputação objetiva do resultado lesivo atribuído à pessoa jurídica, na medida em que admite a possibilidade de exclusão da responsabilidade em função da atuação da empresa dentro do risco permitido ou não desaprovado juridicamente (aferição da imputação objetiva do resultado segundo a conformidade com todas as normas destinadas a prevenir a corrupção); ou a exclusão da responsabilidade em razão da atuação da empresa segundo o princípio da confiança, na medida em que opera de acordo com as regras de integridade, sem ter que se converter em vigia da conformidade com que terceiros com quem interage eventualmente na consecução de seu objeto devem também agir.
A LAC brasileira não possui esses limites do FCPA e do UKBA, muito embora eles pudessem ser instituídos pela via legislativa e, necessariamente, espera-se, pela via judicial, a qual poderia ao menos estabelecer parâmetros mais conformes à nossa ordem constitucional no que concerne à adoção da responsabilidade objetiva. Isto porque, não se pode perder de vista que a responsabilidade objetiva da qual trata a LAC não é aquela que se destina a estabelecer ressarcimento de prejuízos materiais e morais advindos de atos ilícitos em relações de natureza obrigacional, contratual e patrimonial, nas quais uma das partes é inequivocamente hipossuficiente perante a outra.
No caso do artigo 2º da Lei nº 12.846/2013 o que se tem é a aplicação de responsabilidade objetiva com vistas a verdadeiras punições, mais severas. Em âmbito administrativo: multa de 0,1% a 20% o faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação; e publicação extraordinária da decisão condenatória (artigo 6º). E em âmbito judicial: perdimento dos bens, direitos ou valores; suspensão ou interdição parcial de atividades da empresa; dissolução compulsória da pessoa jurídica e proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo de um a cinco anos (artigo 19).
A justificativa para que a responsabilidade da LAC se dê de forma mais severa do que aquela contida nas leis estrangeiras que a inspiraram, decorre da ideia de dispensar a difícil prova de que o funcionário corruptor teria agido com o apoio ou a ciência da empresa, ou de que a empresa deixou de zelar pela conformidade da conduta de seus funcionários. Isso possibilitaria maior facilidade na delimitação da ilicitude e efetividade na sua punição.
Contudo, não se pode partir de uma justificativa meramente utilitária e funcional como esta, pautada na comodidade ou confessada incompetência dos órgãos do Estado para atuarem de forma efetiva na persecução da prova da ilicitude, para descurar da correta natureza dos institutos jurídicos e das garantias necessárias à legitimidade da aplicação de tão pesadas sanções.
Veja-se que se está diante de sanções que, seja na instância administrativa, seja na judicial, acabam necessariamente investindo contra bens da pessoa jurídica e sua liberdade de constituição, existência e contratação, o que necessariamente reclama a garantia do devido processo legal (artigo 5º, LV da CRFB [3]), que reboca em seu bojo a imprescindibilidade de aferição do ilícito para além tão somente de uma causalidade cega ou de risco integral.
Contudo, o que se tem observado nos PARs é que as comissões que conduzem esses processos (muitas vezes compostas por servidores sem formação jurídica) confundem a responsabilidade objetiva com responsabilidade integral, na medida em que recomendam a aplicação de sanções sem sequer terem provas quanto à ocorrência de um ato de corrupção praticado por funcionário da empresa em investigação.
No que concerne à "desnecessidade de dupla imputação" para que a responsabilidade da pessoa jurídica possa ser estabelecida no âmbito da LAC (artigo 3º, caput e §1º), trata-se de mais uma demonstração da natureza eminentemente punitiva que assume a nossa Lei nº 12.846/2013, e que copia o modelo da responsabilidade penal da pessoa jurídica estabelecida disfarçadamente em âmbito apenas administrativo e civil da LAC, como para fugir da expressa restrição constitucional a que somente na seara dos crimes ambientais pode haver responsabilidade penal das pessoas jurídicas [4].
O problema é que, repita-se, a LAC não adotou a responsabilidade objetiva com os pressupostos que a ensejam em âmbito de responsabilidade meramente civil para fins de ressarcimento de danos causados por atos ilícitos em hipóteses de hipossuficiência de uma das partes, mas sim em seara evidentemente punitiva. Trata-se de responsabilidade objetiva para fins de punição em esfera de direito administrativo sancionador, ainda que por meio de duas vias distintas, quais sejam a administrativa (artigo 6º) e a judicial (artigo 19). O fato de a Lei nº 12.846/2013 prever um processo judicial para aplicação das penalidades do artigo 19 não converte a punição ali estabelecida em mero ressarcimento por ato ilícito. No caso, persiste e prevalece o fato de a administração pública prosseguir em um dos polos da referida ação, caracterizando o processo judicial da LAC para fins de punição por atos em corrupção em processo de natureza punitiva em prol da administração pública.
Lamentavelmente, em que pese a LAC estar próxima de completar dez anos de vigência, essas e outras questões ainda persistem sem um enfretamento mais voltado à sua natureza claramente punitiva, a reclamar por isso um tratamento mais conforme o rol de garantias estabelecidos pela Constituição e decorrente de princípios gerais do direito, sobretudo do direito penal, capazes de nortear uma aplicação legítima da punitiva LAC.
Poucas ações foram levadas até o momento ao Judiciário, e na maioria das vezes as empresas, se vendo desprovidas de chances de defesa, têm se conformado com a incidência da responsabilidade objetiva com vistas a aderir ao sistema de julgamento antecipado (Portaria CGU nº 19/2022), que confere os benefícios de redução no cálculo da multa, exclusão do cadastro de empresas condenadas e de não publicação da condenação, relegando a possibilidade de fazer uma defesa de mérito que tenda a buscar a efetivação de seus direitos e garantias fundamentais.
Após uma década de vigência, a LAC vem batendo recordes de sanções aplicadas a empresas, sobretudo na instância administrativa sancionadora. Todavia, mesmo na pendência do julgamento da ADI 5261 sob a relatoria do Ministro André Mendonça (que discute a constitucionalidade da responsabilidade objetiva da LAC), é necessário que os processos versando sobre casos concretos sejam levados ao Poder Judiciário, afim de que se possa aprofundar ao menos duas importantes questões sobre o tema: a definição da natureza sancionadora administrativa da LAC e, por isso, sua submissão às garantias e princípios constitucionais expressos e implícitos, capazes de fazer valer o devido processo legal punitivo; e a presença de uma questionável responsabilidade objetiva que se configura em âmbito punitivo e, por isso, carente de critérios de imputação objetiva que a compatibilizem com os requisitos limitadores de qualquer punição pelo Estado.
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