“O Brasil está de volta.” Esta foi a frase utilizada pelo secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde (Sectics), Carlos Gadelha, no último dia 30 de janeiro, em discurso no Conselho Executivo da Organização Mundial de Saúde (OMS). A declaração resume a postura que o governo Lula pretende adotar nos próximos quatro anos e que, aplicada ao sistema produtivo nacional do setor – o Complexo Econômico-Industrial da Saúde –, pode se traduzir na retomada dos programas de nacionalização da produção e de transferência de tecnologia para laboratórios públicos.
Segundo Gadelha, o Brasil está “totalmente comprometido com a produção local” de insumos estratégicos para a saúde, o que parece indicar que o futuro está próximo de repetir o passado, com a retomada dos investimentos em programas como o das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs).
Afinal, de acordo com o próprio Ministério da Saúde, as PDPs são parcerias firmadas entre laboratórios públicos e privados, com o principal objetivo de fomentar, por meio de acordos de transferência de tecnologia, o desenvolvimento nacional da indústria do setor. Com isso, busca-se reduzir os custos de medicamentos, produtos e vacinas para o SUS, assim como diminuir a dependência externa, especialmente na área de princípios ativos[1]. Isso acontece por meio do arranjo envolvendo empresa privada – que detém a tecnologia –, laboratório público – que absorve a tecnologia – e Ministério da Saúde – que financia a PDP, comprando, com total ou parcial exclusividade, o produto objeto da transferência de tecnologia. O esquema abaixo ilustra o funcionamento das PDPs:
Nos governos do PT, as PDPs foram um dos principais instrumentos de fomento à indústria nacional de saúde. Com o partido no comando, foram 122 parcerias firmadas, contra nenhuma durante o governo Bolsonaro. Durante o mandato deste, pelo contrário, o programa sofreu muita resistência. Em 2019, além da extinção do Departamento do Complexo Industrial e Inovação em Saúde (Deciis), órgão responsável pelo programa, dentro da Secretaria de Ciência e Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) – atual Sectics –, as PDPs passaram por um grande processo de revisão[2]. Como resultado, pelo menos 19 foram suspensas para reavaliação, em conformidade com a legislação e cumprimento de cronogramas.
Mesmo que não possa ser dito que o programa das PDPs foi realmente abandonado durante o governo Bolsonaro, é seguro dizer que, ao menos, parou no tempo. Sem a celebração de novas parcerias, sua tendência era, inevitavelmente, chegar ao fim. De 122 PDPs firmadas, restam apenas 60 vigentes[3], enquanto 18 outras encontram-se suspensas[4] e outras 44 foram extintas[5].
No âmbito do programa, o Ministério da Saúde já desembolsou mais de R$ 26 bilhões, distribuídos do seguinte modo:
Em um governo como o anterior, marcado por cortes no orçamento, principalmente na área de pesquisa e desenvolvimento e inovação em saúde, trata-se de gasto total considerável e que, segundo seus membros, poderia ser alocado para outras alternativas[6]. Com a aprovação da chamada PEC da Transição, o orçamento do novo governo para 2023 ganhou um fôlego de R$ 145 bilhões, o que significou ganhos para o Ministério da Saúde da ordem de mais de R$ 22 bilhões e um orçamento total de mais de R$ 183 bilhões[7].
Além disso, na linha do discurso e das promessas de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o orçamento destinado ao fortalecimento do Complexo Industrial da Saúde passou de pouco mais de R$ 36 milhões (valor previsto no Projeto de Lei Orçamentária aprovado pelo governo Bolsonaro) para mais de R$ 1 bilhão (valor previsto na Lei Orçamentária aprovada pelo governo atual)[8].
Esses valores parecem confirmar a possibilidade de retomada de programas como PDPs, não sendo mera coincidência que o presidente Lula tenha nomeado Gadelha para comandar a Sectics. Afinal, ele já ocupara a função de chefe da SCTIE, órgão antecessor da Sectics, entre 2011 e 2015. Foi justamente o período de consolidação do arcabouço normativo do programa das PDPs, assim como do surgimento das primeiras parcerias formais no âmbito do programa[9]. Além disso, Gadelha sempre foi um grande difusor do fortalecimento do Complexo Industrial da Saúde por meio do uso do poder de compra do Estado, sendo extensa a sua bibliografia sobre o tema[10].
A nomeação de Nísia Trindade como ministra da Saúde também parece apontar para uma possível retomada de programas que, como o das PDPs, visem ao fortalecimento da produção nacional de insumos. Em seu discurso de posse, ela afirmou que a meta é preparar o Brasil para produzir 70% de suas necessidades em saúde. Segundo a ministra, o objetivo faz parte dos esforços do novo governo para fortalecer a produção local de medicamentos, produtos para a saúde e vacinas, reduzindo a dependência externa, tema muito discutido durante a pandemia da Covid-19.
Trindade era presidente da Fiocruz durante a celebração do contrato de transferência de tecnologia entre o laboratório público, a Universidade de Oxford e a empresa AstraZeneca. O acordo ocorreu no formato de encomenda tecnológica, outro instrumento além das PDPs previsto pela Política Nacional de Inovação Tecnológica na Saúde (a Pnits, prevista pelo Decreto 9.245/2017) para o fortalecimento do Complexo Industrial da Saúde.
Apesar de as PDPs não terem sido usadas (ainda que a Fiocruz seja parte de 1/3 das parcerias atualmente vigentes, vale dizer), o papel desempenhado por Trindade em um importante marco para o Complexo Industrial da Saúde soma-se ao background de Gadelha e indica com bastante clareza o mindset do grupo escolhido pelo presidente Lula para comandar o Ministério da Saúde.
O objetivo do novo governo é claro: fortalecer a produção nacional de insumos e produtos para saúde, de modo a reduzir substancialmente a vulnerabilidade e a dependência externa do país. Agora, resta saber se, para isso, os caminhos serão realmente tão novos assim – com a criação de novos instrumentos destinados ao fortalecimento do Complexo Industrial da Saúde – ou se o arcabouço legislativo e regulamentar já posto será utilizado[11], passando, quem sabe, pelas já conhecidas PDPs.
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[1] Vide definição disponível em https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/sectics/deciis/pdp e Portaria MS 2531/2014, artigo 2º, I, e artigo 3º, I e II.
[2] Em 2017, durante o governo Temer, já havia sido extinto o Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (Gecis), uma importante ferramenta de articulação com o setor privado na implementação do programa das PDPs. Tanto o Gecis quanto o Deciis foram recriados durante o governo Bolsonaro, mas, com o resultado das eleições favorável ao PT, a estrutura e as atribuições de ambos os órgãos estão sendo revistas pelo novo governo.
[3] De acordo com dados do Ministério da Saúde, atualizados em 15/12/2022 e disponíveis em https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/sectics/deciis/pdp/produtos-objeto-de-pdp/medicamentos-vacinas-e-hemoderivados/parcerias-vigentes.
[4] De acordo com dados do Ministério da Saúde, atualizados em 15/12/2022 e disponíveis em https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/sectics/deciis/pdp/produtos-objeto-de-pdp/medicamentos-vacinas-e-hemoderivados/parcerias-suspensas.
[5] De acordo com dados do Ministério da Saúde, atualizados em 15/12/2022 e disponíveis em https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/sectics/deciis/pdp/produtos-objeto-de-pdp/medicamentos-vacinas-e-hemoderivados/parcerias-extintas.
[6] Conforme divulgado pela imprensa em https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/orcamento-da-saude-sofre-cortes-que-podem-chegar-a-r-60-bilhoes-18112022.
[7] Conforme dados disponibilizados em: https://portaldatransparencia.gov.br/orgaos-superiores/36000?ano=2023.
[8] De acordo com os valores previstos no PLOA 2023 e na LOA 2023.
[9] Em 2012, o Ministério da Saúde editou Portaria MS 837/2012, em que, pela primeira vez, surge a nomenclatura “Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs)”, com a definição de diretrizes e critérios para o seu estabelecimento, mesmo que de forma incipiente. Ainda em 2014, o órgão editou a Portaria MS 2.531/2014, estabelecendo arcabouço normativo mais robusto para o programa. Embora a Portaria MS 2.531/2014 tenha sido revogada pela Portaria de Consolidação MS 5/2017, o conteúdo da primeira foi, na prática, apenas incorporado pela segunda, a qual continua sendo substancialmente a principal fonte normativa do programa das PDPs, ainda que como parte de outra norma.
[10] Vide, por exemplo, o artigo “Complexo Industrial da Saúde e a Necessidade de um Enfoque Dinâmico na Economia da Saúde”, publicado por Gadelha em 2003 e disponível em https://www.scielo.br/j/rsp/a/fkCDMSmRsjMn6GDTDKmWGnc/?lang=en.
[11] Destacam-se, nesse sentido, mas apenas a título exemplificativo, a Lei 10.973/2004, o Decreto 9.245/2017, e o Decreto 9.283/2018.
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